quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Uma questão cultural

Neste post, publico um texto do meu diretor, Adair De Toni, que relata muito bem uma prática, que pode-se dizer, é cultural, já que trata da morte com uma naturalidade que não se percebe em todos os locais.



Coberta D´alma

Dia destes tive a oportunidade de conhecer um gaúcho da cidade de Osório, hoje radicado em Francisco Beltrão. Entre histórias e histórias, ele abordou uma que me remeteu aos “comedores de pecado” da antiguidade.

Este gaúcho me falou de um ritual fúnebre praticamente desconhecido por nós, paranaenses, e que chama atenção por sua singularidade: a personificação do morto, por parente ou amigo eleito pela família do falecido, como processo de liberação da alma.

Conhecido como Coberta D´alma, esse ritual antigo é ainda praticado na região de Osório no Rio Grande do Sul e em alguns pontos de Santa Catarina: Lagoa dos Esteves, Urussanga Velha, Pedreiras, Barra Velha, Praia do Rincão e consiste numa cerimônia em homenagem a quem morre, e acontece no sétimo dia de seu falecimento.

Um amigo ou parente é convidado a um  processo de personificação e ganha as "roupas do morto" e, algumas vezes, recebe da família em luto, o tratamento antes conferido ao falecido, chegando até  mesmo a  ser chamado pelo nome do mesmo.

Quando morre alguém da família, é procurado um amigo ou familiar de idade próxima a do morto e convidam esta pessoa para fazer a “cobertura d’alma”.

Levam o convidado numa loja, compram todas as peças de roupa necessárias para vesti-lo, inclusive peças íntimas.

No sétimo dia da morte, no final da tarde, logo após a missa de sétimo dia, todos se reúnem na casa do falecido. Enquanto os demais familiares esperam na sala, o convidado é chamado então para “cobrir a alma”.
 Entra num quarto acompanhado pela pessoa mais velha da família, que vai entregando-lhe peça por peça da roupa dizendo alto para todos ouvirem:

- Veste a camisa (diz o nome do morto)

- Veste a calça (diz o nome do morto)

Tudo isso em alto e bom som para que possa ser ouvido na sala.

Já devidamente vestido, o convidado entra na sala, cumprimenta e abençoa os presentes.

Se ele representa o pai que morreu, filhos e netos pedem-lhe a benção.

Se foi uma criança, os mais velhos é que devem abençoá-lo.
Feito isso, algumas orações são feitas,  e sentam-se para jantar.

A comida consiste nos pratos preferidos da pessoa falecida e servida em porções bastante generosas ao convidado, agradado por todos como se fosse realmente a pessoa morta que estivesse ali.

Terminado o banquete, um familiar de mais autoridade leva o escolhido que veste a “coberta d’alma”  até a porta da casa e olhando para o horizonte proclama:

- Fulano (diz o nome do falecido) tu já recebeste a roupa nova.

- Já te demos o que comer.

- Já te demos o que beber.

- Já rezamos por ti.

- Já fizemos tudo o que era para fazer.

- Vai com Deus, descansa em paz e deixa-nos em paz.
Durante toda a cerimônia a pessoa escolhida é chamada pelo nome do morto.

A cerimônia encerra-se e a partir deste ponto estabelece-se uma forte ligação  entre a família e o convidado, que passa a ser moralmente considerado como membro da família.

Se foi o pai que morreu, os filhos consideram-se filhos de quem vestiu a alma, visitam-se mutuamente, ouvindo inclusive as opiniões um do outro sobre os assuntos familiares.

Segundo algumas pessoas, a alma do falecido permanece na terra e na casa até a cerimônia. A alma fica perambulando, vagando pelos arredores até a coberta d’alma ser feita.

Se a cerimônia não for feita a alma ficará vagando, não encontra a paz nem deixa ninguém em paz. Por mais incrível que possa parecer, esta prática é realizada por várias famílias brancas e negras, ricas e pobres do litoral catarinense e rio-grandense.


(Adair De Toni)

Nenhum comentário:

Postar um comentário